Consulta ou controle? A farsa da participação democrática na escolha de diretores escolares no Paraná

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“O cozinheiro perguntava com que molho elas [as aves] queriam ser comidas. Uma das aves, uma humilde galinha disse: ‘Nós não queremos ser comidas de maneira nenhuma.’ O cozinheiro esclareceu: “Isso está fora de questão.”

Eduardo Galeano


O Edital nº 58/2025 da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED-PR), que regulamenta o processo de habilitação para candidatos(as) à direção das escolas públicas estaduais, representa um grave retrocesso no que diz respeito à gestão democrática da educação. Sob o disfarce de uma “consulta à comunidade escolar”, o governo do estado impõe um modelo autoritário, excludente e subordinado à lógica empresarial, esvaziando de sentido qualquer noção real de participação popular.

Falsa democracia: a comunidade como figurante

Não se trata de uma eleição, mas de uma consulta. E mesmo essa está limitada desde o início por uma seleção rigorosa e centralizada, que restringe previamente quem pode ou não ser candidato. A comunidade escolar é chamada apenas ao final do processo, para referendar nomes já homologados pelo governo. Ou seja, a decisão já está tomada antes mesmo do voto.

Chamar isso de democracia é uma afronta à inteligência da sociedade paranaense. É a substituição da soberania popular por um simulacro de escolha, em que tudo já foi filtrado, controlado e decidido nos bastidores da burocracia estatal. A escola, nesse modelo, deixa de ser um espaço de construção coletiva para se tornar mais uma engrenagem subordinada à plataformização da educação, à uberização do trabalho, metas e índices.

Gestores treinados para obedecer, não para liderar

O curso obrigatório e a prova eliminatória não são mecanismos de formação, mas de conformação. O objetivo não é preparar lideranças educativas críticas e comprometidas com suas comunidades, com a escola pública de gestão pública e civil, mas selecionar quem melhor se adequa às diretrizes privatistas do governo. A formação exigida molda um perfil específico: o gestor que cumpre ordens, que reproduz o discurso da eficiência, que efetiva políticas sem questionar, que transforma a escola num balcão de negócios.

Esse tipo de seleção exclui educadores com experiência, compromisso e enraizamento comunitário que não se enquadram nesse perfil tecnocrático. Ao invés de fortalecer a democracia nas escolas, o governo investe em padronização, controle e silenciamento.

Plataformas, metas e vigilância: a educação como linha de montagem

A “consulta” reforça a plataformização da gestão educacional, em que direções escolares são reduzidas a operadores locais de sistemas digitais centralizados. Sob o discurso da inovação, instala-se a vigilância, a perda de autonomia e o adestramento técnico. A direção escolar passa a ser cobrada por resultados definidos por quem não pisa na escola — e não pelo trabalho construído com sua comunidade.

Essa lógica também está profundamente conectada à precarização das condições de trabalho. Com direções escolares subordinadas e pressionadas por indicadores, o que se impõe nas escolas é uma intensificação brutal do trabalho, metas inalcançáveis, responsabilização individual por fracassos coletivos e invisibilização das causas reais da baixa aprendizagem: a pobreza, o desmonte da educação, a desvalorização dos profissionais, o adoecimento crescente.

A formação de uma subjetividade autoritária

Mais do que selecionar perfis técnicos, o processo imposto pela SEED atua na formação de uma subjetividade autoritária. Ao exigir a adesão prévia e acrítica a conteúdos e modelos definidos centralmente, o edital molda um tipo de profissional treinado para obedecer, vigiar e controlar — não para dialogar, escutar e construir coletivamente. Direções escolares formadas sob esse modelo tendem a reproduzir internamente a lógica da obediência e da hierarquia, consolidando uma cultura escolar baseada na submissão, no medo e na naturalização do autoritarismo.

Essa produção de subjetividades dóceis e disciplinadas está a serviço de um projeto mais amplo de militarização e privatização da gestão das escolas públicas. Ao formar direções escolares moldadas para obedecer e reproduzir ordens sem questionamento, o processo reforça a lógica do controle autoritário e esvazia o espaço para o dissenso, o debate pedagógico e a construção coletiva. Esse modelo responde diretamente aos interesses das forças políticas conservadoras e da extrema direita, que têm se expandido nas estruturas do Estado e que buscam impor uma escola funcional à sua agenda ideológica de controle dos corpos e dos currículos: disciplinadora, silenciadora e alheia aos problemas reais das comunidades.

Ao reduzir direções escolares a executores de metas e, consequentemente, a fiscais da plataformização, o governo pavimenta o caminho para a entrega da gestão pública a agentes privados, militares ou “terceiros setores” alinhados com esse projeto de sociedade. Trata-se de um movimento deliberado de deseducação para a democracia, que transforma as escolas em braços da ordem e da hierarquia, e não em territórios de liberdade, crítica e emancipação social.

A contradição do excesso de trabalho com a exclusão da participação

Outro aspecto problemático deste edital é a contradição flagrante entre a intensificação da jornada de trabalho docente — ampliada por meio de plataformas digitais, formações obrigatórias e tarefas gerenciais — e a exclusão concreta da maioria dos educadores da possibilidade de participar do processo de consulta.

Em um contexto de exaustão física e mental, com sobrecarga cotidiana e adoecimento crescente da categoria, exigir dedicação extra a formações e avaliações como pré-requisito para o direito de disputar a direção da escola é não só elitista como excludente. A própria estrutura do processo já funciona como filtro de classe, tempo e disposição, favorecendo poucos e afastando muitos.

Um projeto de privatização por dentro da escola pública

Ao formatar direções escolares segundo esse modelo gerencial, o governo prepara o terreno para a conversão das escolas em unidades de gestão empresarial, abrindo caminho para a terceirização, a entrada de consultorias privadas e a substituição da política pública por contratos de resultados. É a privatização da escola pública por dentro — sem mudar a fachada, mas esvaziando seu conteúdo social e democrático.

É hora de dizer não à farsa da consulta

O que está em jogo não é apenas a forma de escolher as direções escolares, mas o futuro da escola pública. A consulta limitada, a formação doutrinadora, a prova excludente, as plataformas de controle e a lógica empresarial são partes de um mesmo projeto: retirar da comunidade escolar o poder de decidir sobre sua própria escola.

Não se trata de melhorar a gestão. Trata-se de garantir que nenhuma direção escolar possa se contrapor às ordens de cima. Trata-se de calar as vozes dissonantes, sufocar a crítica e padronizar a obediência. Por isso, é necessário denunciar esse processo como o que ele é: autoritário, centralizador, antidemocrático e nocivo à educação pública.

Diante desse cenário de autoritarismo disfarçado de participação é preciso resistir ativamente. Conclamamos todos os trabalhadores e trabalhadoras da educação, estudantes e comunidades escolares a denunciar a farsa desse processo de escolha e pressionar as direções escolares no atendimento dos interesses das comunidades escolares e na construção de uma educação popular.

É hora de construirmos, nos nossos territórios, processos verdadeiramente democráticos, com ampla e efetiva participação da comunidade, onde a direção escolar seja expressão da vontade coletiva e não da imposição de cima para baixo. É tempo de fortalecer a gestão pública, a autonomia pedagógica, e, sobretudo, de retomar a luta coletiva como única via para barrar o avanço do controle, da privatização e do autoritarismo. Só a mobilização organizada pode reverter essa lógica autoritária e abrir caminho para uma educação libertadora, construída com e para o povo.

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