Veja a posição do M29 sobre a Prova Brasil: precisamos romper o ciclo do controle e da culpabilização e resistir às avaliações que precarizam e privatizam a educação
Nas últimas décadas, as avaliações em larga escala e padronizadas têm sido alçadas à condição de principal instrumento para “medir” a qualidade da educação pública, num movimento de “indenização”. Apresentadas sob a retórica da melhoria do ensino, da responsabilização e da busca por resultados, essas avaliações operam, na prática, como dispositivos de controle, desresponsabilização do Estado e aprofundamento da lógica privatista e meritocrática no campo educacional. Longe de representar uma solução para os problemas históricos da escola pública, elas se tornaram um dos principais mecanismos de sua desfiguração.
A primeira e talvez mais grave consequência desse modelo avaliativo é a redução da complexidade do processo educativo. As avaliações externas padronizadas priorizam habilidades e conteúdos mensuráveis – geralmente restritos à língua portuguesa e à matemática – promovendo o empobrecimento curricular e marginalizando áreas fundamentais para a formação integral, como as artes, as ciências humanas e a educação física. Ignoram-se, nesse processo, as dimensões subjetivas, afetivas, sociais e culturais da aprendizagem, transformando a escola em um espaço técnico de adestramento para provas.
Esse adestramento, por sua vez, engendra a pedagogia do treinamento, em que o ensinar para o teste torna-se a regra. A diversidade pedagógica e o diálogo com os contextos locais são substituídos por práticas homogêneas e roteiros de ensino que visam, exclusivamente, maximizar índices. A avaliação, que deveria ser instrumento de diagnóstico, escuta e transformação, converte-se em mecanismo de padronização e coerção.
Nesse contexto, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) passa a cumprir papel central na estrutura de controle. Articulada diretamente às avaliações externas, a BNCC reduz o currículo a competências técnicas mensuráveis, favorecendo uma visão instrumental da educação. Longe de representar uma engrenagem na garantia dos direitos de aprendizagem se converte em uma camisa de força: escolas e professores passam a seguir rigidamente um modelo pré-formatado, limitando a autonomia pedagógica e, na prática, impedindo abordagens que valorizem a diversidade cultural e regional de um país de dimensões continentais. Esse currículo instrumentalizado age como ferramenta de controle pedagógico intensificando a lógica da padronização e esvaziando os projetos alternativos, criativos e críticos.
Neste cenário, a responsabilização dos docentes emerge como um dos eixos mais perversos da política avaliativa. Os professores, constantemente vigiados e cobrados a apresentar resultados, são culpabilizados por índices baixos, sem que se considerem as condições materiais, sociais e institucionais em que atuam. Reduzidos a meros executores de metas, perdem autonomia, são submetidos a rankings, bonificações e penalizações que desvalorizam seu trabalho intelectual e colocam em xeque sua própria identidade profissional.
A retórica meritocrática que sustenta essas avaliações colabora diretamente para a desresponsabilização do Estado. Ao medir todos com a mesma régua, ignorando profundas desigualdades estruturais, transfere-se para a escola – e, sobretudo, para seus professores – a culpa pelo fracasso educacional. O Estado, em vez de garantir financiamento adequado, formação continuada, condições de trabalho e políticas públicas consistentes, opta por punir os que já estão à margem, reforçando o ciclo da exclusão.
Mais do que um instrumento técnico, a avaliação externa se revela um instrumento ideológico, utilizado para justificar políticas de teor neoliberal na educação. Rankings escolares alimentam uma lógica de competição e estigmatização, corroem a imagem de instituições vulneráveis e afetam a autoestima de estudantes e professores. A gestão da educação passa a ser regida por parâmetros empresariais: eficiência, produtividade e desempenho. Substitui-se o diálogo pedagógico pelo controle tecnocrático, submetendo a escola pública à lógica empresarial.
Tal modelo abre espaço para a privatização e mercantilização da educação pública. A obsessão por resultados cria uma nova demanda de mercado: sistemas apostilados, consultorias, plataformas digitais e pacotes pedagógicos vendidos como soluções mágicas. Empresas se infiltram nos processos de avaliação e gestão escolar, lucrando com a precariedade do sistema e impondo modelos pedagógicos estéreis, desvinculados da realidade das escolas e das necessidades dos estudantes.
Por fim, impõe-se uma lógica de controle que nega a educação como prática da liberdade, nos termos de Paulo Freire. Ao contrário de estimular o pensamento crítico e a emancipação dos sujeitos, as avaliações externas operam como ferramentas de domesticação. Valorizam respostas certas e comportamentos previsíveis, rechaçando a dúvida, a invenção e a crítica. A escola pública, nesse contexto, deixa de ser um espaço de formação cidadã para se tornar um laboratório de desempenho sob vigilância constante.
Diante de tudo isso, é urgente recuperar o sentido ético, político e emancipador da avaliação. Isso só será possível rompendo com a lógica punitivista, padronizadora e mercantil que hoje orienta a maior parte das políticas educacionais. Avaliar, em uma perspectiva crítica e democrática, é reconhecer os sujeitos em sua integralidade e diversidade, respeitar os contextos e apostar na escola pública como espaço de criação, diálogo e transformação social.